
Pesquisa realizada pela arquiteta Márcia Hirata aponta a região do Glicério como território de resistência do catador de material reciclável. O estudo foi defendido como tese de doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, sob orientação do sociólogo Paulo Cesar Xavier Pereira. A pesquisa baseou-se no método de história oral abrangendo catadores organizados na Cooperglicério, fundada em 2006 na baixada do Glicério.
O Glicério sempre foi uma região rica em debates sobre a população em situação de rua e dos catadores. “À medida que fui conhecendo o local, desde 1997, tomando conhecimento da quantidade de entidades que desenvolvem seus trabalhos ali, fui percebendo que tal convergência não se tratava apenas de uma coincidência. A partir desta percepção fui instigada a entender o que significa esta mobilização em torno da região”, explica.
O estudo se desenvolveu baseado no interesse da pesquisadora de entender como as pessoas de baixa renda constroem suas vidas, seu trabalho, em meio ao conflito, à disputa por espaço e à ameaça de expulsão, uma realidade do centro da cidade imposta pela valorização imobiliária. “O trabalho começa na década de 1980, momento de bastante mobilização dos movimentos urbanos, que se reflete no Glicério. Minha estratégia foi amarrar a história da construção da Cooperglicério com a história pessoal das pessoas. Assim fui entendendo como o Glicério foi se constituindo como um espaço dos catadores”.
De acordo com a arquiteta, ao longo da história, construiu- se uma rede social no Glicério, composta por entidades, pastorais, apoiadores e universidades, em torno do trabalho do catador. “O Glicério oferece possibilidades para a reciclagem que garante a permanência deles ali. O trabalho destas pessoas foi construindo e aglutinando uma rede social, sobretudo a partir do final dos anos 1970, quando houve a oportunidade, com a ajuda de apoiadores, de um fazer mais politizado em relação ao trabalho. Este é um fator decisivo para a permanência do catador na região”.
Do ponto de vista urbano, define Márcia, a condição colocada no Glicério permite perceber o catador por um viés que ultrapassa a condição de trabalhador superexplorado pelo capital. “Ele está em uma cadeia produtiva do capitalismo, e por isso está na condição de explorado, mas é também um sujeito político do ponto de vista urbano. Ele organiza, por meio de decisões coletivas, o seu trabalho, luta por reconhecimento, por leis e conquistas institucionais”, afirma.
Território do catador
A pesquisadora recorre ao processo histórico para avaliar como o Glicério foi se constituindo como espaço dos catadores.
Logo no início da formação de São Paulo, a centralidade estava no Pátio do Colégio, voltada para o rio Tamanduateí (Avenida do Estado). Na década de 1910, o setor imobiliário começou a ter interesse pelo outro lado da cidade, a região oeste. “O Glicério passou a ser as costas da cidade. Isso significa dizer que a região não despertava interesse nos investimentos imobiliários, espaço de uso das elites e acabou se tornando espaço de possibilidade para as pessoas que não possuíam acesso à cidade formal”.
Pela concentração de pobreza, explica Márcia, a região passou a atrair a atenção e os esforços das pastorais e de entidades, como a Organização de Auxílio Fraterno (OAF). Na década de 1980, com a efervescência dos movimentos sociais, havia debates e luta por direitos, principalmente, na periferia da cidade, que não poderia deixar de incluir o Glicério. “Ali sempre houve entidade assistencial. Mas no final de 1970, iniciou-se um processo de reflexão sobre as causas desta pobreza, cujo método de trabalho era provocar o debate junto às próprias pessoas que estavam passando pela situação de pobreza”, explica.
Um dos atores que apareceram como potenciais superadores da pobreza foram os catadores. “Tinham uma renda e passaram a fazer um debate da superação da pobreza por meio de seu próprio trabalho, afinal eram superexplorados”. Na época era comum a dependência do catador em relação ao dono do ferro-velho. “Eles moravam nos depósitos em troca de vender o que catassem para o dono do ferro-velho. A construção do fazer politizado e sua consolidação foi fator fundamental para que a própria condição do trabalho do catador se modificasse. Hoje a quantidade de catadores que se submete ao dono de um ferro-velho no Glicério é bem menor”.
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Edição N° 198 - Junho de 2011
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