QUEM CONTA AS MORTES POR FRIO?
- Caio Moraes Reis

- 16 de out.
- 2 min de leitura
“...a morte é presença constante no dia a dia de quem não tem como se abrigar do frio.”

Há mais de sessenta anos que, durante o inverno na cidade de São Paulo, os jornais noticiam mortes de pessoas em situação de rua pelo frio. A notícia mais antiga que consegui encontrar foi publicada na Folha de S. Paulo em 18 de junho de 1961. O corpo de Romeu Petri, de aproximadamente 50 anos, teria sido encontrado “ao lado de pequena fogueira de gravetos e bambu seco, numa olaria de Guaianases”. Na época, o bairro no extremo leste de São Paulo era famoso pelas fazendas, pelas fábricas de tijolos, telhas e cerâmicas, e pela estrada de ferro que levava ao Rio de Janeiro. Cenário muito diferente do atual centro da cidade, onde tantos irmãos e irmãs ainda morrem em decorrência das baixas temperaturas.
Até hoje, porém, as notícias de jornal são um dos poucos registros de quem e quantos são os que morrem de frio nas ruas de São Paulo. Apenas em 2018 a Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), começou a monitorar os óbitos decorrentes do frio no âmbito da Operação Baixas Temperaturas (OBT), implantada todos os anos durantes os meses do outono e do inverno. Ainda assim, como consta no relatório da OBT 2020, o levantamento realizado pela SMDHC é artesanal, dependendo de “informações derivadas de agentes públicos, dos territórios, notícias publicadas pelos meios de comunicação, movimentos sociais e pela sociedade civil em geral”.
Na prática, a Prefeitura não registra ativamente a ocorrência dessas mortes. E, quando comunicada a respeito de um óbito, dificilmente reconhece o frio como causa da morte. Problemas cardíacos ou complicações de doenças preexistentes são usadas como justificativa para não atribuir essas mortes ao frio, embora as baixas temperaturas sejam responsáveis pelo agravamento do estado de saúde de quem está dormindo nas ruas. Assim, por trás de uma suposta busca pela causa “exata” da morte, camufla-se o impacto da exposição ao frio extremo.
Como, então, garantir que essas mortes sejam registradas? Como fazer para que a memória de quem se foi sob o frio intenso nas calçadas da cidade possa ser resgatada e mobilizada na luta por dignidade e direitos da população em situação de rua?
Aqui, é importante o trabalho que movimentos sociais, como o MNPR, a Rede Rua e o MEPSRSP realizam, de registro da ocorrência dessas mortes a partir de relatos de pessoas em situação de rua e parceiros, como o Consultório na Rua, o SEAS, os centros de acolhida e pessoas engajadas nas pautas da população de situação de rua. Mas é preciso articular esses registros para que se possa contrapor os dados da Prefeitura e reforçar a construção de uma memória das mortes na rua.
O poder público e a imprensa lidam com o tema como se as mortes por frio fossem excepcionais, incomuns. É preciso mobilizar a força das ruas para mostrar que a realidade é outra, que a morte é presença constante no dia a dia de quem não tem como se abrigar do frio. A reunião desses registros pode dar visibilidade à urgência da pauta por moradia, saúde e assistência para a população em situação de rua.



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